Editorial:
"Pequenos Tesouros Perdidos"
A encantadora visão de Vinhedo, do alto da Rua da Saudade, me fez prometer naquele mesmo instante que, um dia, viria aqui morar fossem quais fossem as dificuldades – e creiam-me, não foram poucas! Foi um amor à primeira vista, e, naquela ensolarada manhã de Abril de 1992, fechei os olhos e pensei agradecida: Estou em casa!
Era inacreditavelmente bela aquela cidade esparramada pelo imenso vale verde – repousante, tranqüila, acolhedora. Fiquei refém de suas singelas belezas: das casas antigas – testemunhas silenciosas da história de muitas vidas, das ruas sossegadas, bem arborizadas e limpas, das pessoas sorridentes e simpáticas, debruçadas sobre baixas muretas divisórias ou sentadas numa velha praça de contornos suaves e bancos de pedra, protegidas do forte calor por incríveis árvores centenárias, apenas jogando conversa fora, sem pressa nenhuma ... e do chamamento irresistível do som de sinos à Hora do Ângelus, convidando-nos a entrar – mesmo por instantes – na graciosa e despojada matriz e assim presenciar a luz do entardecer atravessando docemente os belos vitrais coloridos, reproduzindo-os harmoniosamente nas paredes claras – em respeitoso silêncio e absoluta paz.
Na verdade, eu já havia cedido, horas antes, aos encantos deste Residencial com seu luminoso lago rodeado de muito verde, pois, por um feliz acaso, entrei nesta cidade pela estrada de Itatiba e em aqui chegando, nada mais foi preciso buscar! Com o tempo, fui descobrindo outros locais adoráveis: recantos tranqüilos, represas, velhas fazendas, pequenos vales brancos recobertos de jasmim cheirosos, pracinhas floridas com água potável, as árvores sempre em flor da Santa Casa; um delicioso Portal com seu mar rosa de rosas-menina, bosque, trilhas e corredeiras... - mas gostava especialmente de observar uma inusitada fazenda com seus animais, muito próxima do centro da cidade, avistada do alto do Panorama, um bairro com pitorescas ruas de lajotas, e também a magnífica paisagem próxima ao Mosteiro que, como um cartão postal, descortinava-nos toda a cidade: ora iluminada pelo sol da manhã, ora envolta na névoa alaranjada do pôr-do-sol, ou ainda lembrando um grande presépio ao anoitecer, com suas centenas de luzes brilhando ao longe – feito estrelas.
Hoje, infelizmente, apenas 9 anos passados, muitas casas de época cederam lugar aos estacionamentos, as fontes ficaram poluídas, as pessoas levantaram os muros e trancaram as portas, a praça “submergiu” sob horríveis lajotinhas e ficou quase deserta, as majestosas árvores desapareceram, a tal fazenda foi desmembrada virando mais um condomínio fechado e a linda paisagem tornou-se propriedade particular, escondida atrás de uma monstruosa muralha!
De repente, rapidamente, todos estes recantos - “esses pequenos tesouros” - estão virando enormes canteiros de obras – e a terra nua, já sem sua vegetação bela e original, quase sem vida, aguarda passiva o golpe final: tijolos, máquinas pesadas, muito cimento, fumaça, trânsito, agitação.
É o progresso dirão alguns, é o direito de quem comprou a terra, alegarão outros, e é verdade. Entretanto, todos nós sabemos que é uma lástima tantas obras e loteamentos serem aprovados indiscriminadamente nesta cidade, em detrimento da qualidade do meio ambiente, de modo geral: ar, água, nascentes, mata, animais, paisagismo, clima, segurança, tradições e história - tudo vai sendo derrotado, soterrado, carregando consigo todo o “diferencial” que aqui viemos buscar.
Deixo aqui meu testemunho, escrevendo esse texto com o coração na ponta dos dedos, e refletindo que esta total descaracterização de locais preciosos é uma perda quase tão dolorosa quanto o desaparecimento de um ser humano querido – e assim mesmo é que deveria ser encarada -, pois em ambas as situações, todos nós, de início, nos mobilizamos para ajudar (especialmente os remanescentes). Entanto, com o passar do tempo, nos acomodamos – resignados ou omissos – chegando a ficar impacientes com a intensidade das emoções alheias – então lavamos as mãos achando que já fizemos a nossa parte. E seguimos em frente, ocupados com nossas próprias prioridades e urgências, sinceramente esperando que “tudo” se resolva e, como mágica, volte logo ao normal, concluindo que esse é ainda o método mais natural de se atingir o equilíbrio natural, aqui no caso, o ambiental.
Tentamos, a todo custo, ignorar as profundas alterações causadas pela interrupção da vida como um processo avassalador que sempre abre chagas doloridas, difíceis de cicatrizar, modificando tudo ao seu redor e jamais permitindo retrocessos – quer ocorra num grande ecossistema ou numa pequena célula familiar...
É tudo uma grande pena, e nem sabemos se as pessoas diretamente afetadas tiveram interesse, força ou perseverança para tentar salvar os recantos especiais que alegravam nossa vida cotidiana; mas talvez - aqui - ainda tenhamos tempo de proteger essas águas serenas, de amparar os pequenos animais desprotegidos, e de defender essas árvores amigas que, a exemplo de muitos seres humanos, gritam por nosso socorro – em absoluto silêncio!
Silvia Regina Costa Lima
Publicado no jornal Prisma n.23, de Abril de 2001
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**Foto de Silvia Regina
Ps: É bem provável que ninguém leia este texto, por ser bem grande, mas eu o quis publicar assim mesmo, porque gosto muito desta cidade - e do que ela representa em minha vida e na de meus filhos.
SILVIA REGINA COSTA LIMA
Enviado por SILVIA REGINA COSTA LIMA em 19/03/2008
Alterado em 13/03/2011